sábado, 13 de agosto de 2011

FILMES COMERCIAIS NO ENSINO DE HISTÓRIA


Por Mateus Cunha
FAPA, 2001

            No ensino de História, de diversos níveis, a utilização do cinema tornou-se mais freqüente depois da criação de recursos como a fita VHS, o videocassete e as vídeo locadoras. Nesse sentido, cabe diferenciar o filme documentário, registro de imagens e sons de situações que realmente ocorreram; e o filme ficção, recriação de uma realidade com cenários e atores. Neste breve artigo, interessa-me o segundo tipo, o filme que, baseando-se em informações sobre o passado, recria uma época; filmes produzidos para o cinema ou disponíveis nas vídeos locadoras, entendidos como lazer ou “acesso à cultura”. São filmes comerciais, criados com outra finalidade, que utilizamos na sala de aula.
            A partir de uma breve observação de como os professores usam estes filmes comerciais em suas aulas, é que pretendo desencadear a reflexão e elaborar proposições. Ao lado de elogiáveis experiências de utilização do cinema comercial, pode-se observar alguns descuidos ou equívocos: 1) a sub-utilização, ou seja, o uso do cinema é rico em possibilidades que são insuficientemente exploradas; 2) o filme é levado para a sala de aula nos momentos em que o professor necessita liberar seu tempo para atender outro compromisso ou, não tendo planejado suficientemente a aula, o filme é utilizado para ocupar tempo; 3) o cinema é tomado, especialmente pelos alunos, como “uma verdade consolidada”, sem perceber que o cineasta apresenta uma visão da História e da sociedade e tem intenções ao produzir o filme; 4) o filme é levado para a sala de aula antes que o professor o tenha assistido, condição essencial para o planejamento do trabalho; 5) as condições materiais e técnicas, sala e equipamentos em especial, são inadequadas.
            Portanto, defende-se aqui o argumento de que os filmes comerciais, não produzidos para o uso escolar, podem ser um interessante recurso para o estudo de História, desde que adequadamente utilizados.
            Quando tratamos do tempo, um dos conceitos essenciais para a História, o cinema permite algo interessante: virtualmente, estar e viver em outro tempo, passado ou futuro. Coloca-nos em um tempo que não é nosso, mas que nos esforçamos para entender. Portanto, é fundamental a tarefa de, ao planejar a aula e ao assistir o filme, perceber o período retratado e a época em que o filme foi criado. A representação do tempo, das mudanças que acontecem no tempo, das marcas deixadas. O mais comum no cinema é a forma linear, ou seja, seguindo um caminho cronológico do passado para o presente, como exemplo “Dança com Lobos” (de Kevin Cotner, EUA, 1990).
            Contudo, outras formas são utilizadas: o relembrar, onde, mesmo com um enredo linear, os personagens voltam no tempo para lembrar e reviver acontecimentos passados, exemplo o filme “Lamarca” (Sérgio Rezende, Brasil, 1994), o desenrolar do filme por vezes faz um vai e vem no tempo; “Evita” (Alan Parker. EUA, 1996), que só se fecha no final; ou desenvolve-se em dois tempos que convergem, como “O último Imperador” (Bernardo Bertoluci, EUA/Itália/Inglaterra, 1987).
            Os cortes realizados na gravação e na montagem do filme, tecnicamente necessários, ligam-se à compreensão da representação do tempo. Um automóvel sair de determinada cidade e alguns segundos depois (no tempo de quem assiste ao filme) está chegando à próxima cidade, algumas dezenas de quilômetros distante da primeira. Os cortes e avanços exigem uma postura do espectador frente à linguagem cinematográfica. Assim, o filme contribui para a construção do conceito de tempo pelo aluno e para o entendimento de seus diferentes ritmos.
            Observando por outro lado, o cinema recria — através dos cenários, de sofisticados recursos de computação gráfica, do vestuário — o ambiente de uma época dando-nos a impressão de estar nele. Ao mesmo tempo a câmara recorta um espaço, seja pelo local que retrata, seja pelo enquadramento adotado. Podemos assim, virtualmente, visitar lugares aos quais não teríamos acesso ou rever espaços conhecidos, que nos são mostrados de uma forma diferente daquela a que estamos habituados a ver. Portanto, ao usar o cinema é imprescindível o trabalho de localização espacial, ou seja, perceber que espaço o filme esta retratando.
            O movimento, os acontecimentos, os processos históricos podem ser representados, pelo cinema, de forma a reconstituir, em parte, suas dinâmicas. Em um livro, sem diminuir sua importância, as idéias são apresentadas e os argumentos são construídos em uma seqüência ordenada de palavras, ou seja, há uma palavra após a outra, uma de cada vez. Mesmo que o livro incorpore imagens, e elas entram na seqüência, a simultaniedade dificilmente é obtida. Com o cinema, é possível conjugar imagens em movimento, textos escritos, a fala dos personagens e ainda ruídos ou música. Assim, as informações chegam ao espectador de forma complexa e simultânea. Perceba-se ainda, que imagem e som podem ser apresentados na forma como foram captados ou então manipulados. No segundo caso, é possível inclusive que a fala não corresponda àquilo que os atores pronunciaram (lembrando o filme dublado), que os ruídos tenham sido incorporados artificialmente, que a música seja acrescentada, produzindo uma ilusão de realidade. O cinema permite a recriação, contribui para a construção que faz o aluno, da compreensão do funcionamento e da organização da sociedade. Mais do que isso, o filme permite-nos entrar no enredo, participar da ação, das emoções, embora não de forma interativa. É possível observar o cotidiano, entrar na vida privada, detalhar processos e particularidades. Assim, o filme pode assumir a tarefa da sensibilização, despertando o interesse ou a curiosidade de que quem assiste, comovendo ou revoltando.
            Por fim, ao assistir um filme acabado não sabemos do trabalho, dos problemas, das razões de quem o produziu. Não é exatamente o processo técnico de produção do filme que nos interessa. Antes, vale discutir a relação entre cinema, História e verdade. Nesse sentido, deve-se considerar o historiador Marc Ferro, ligado à Escola Francesa dos Annales, que produziu significativos estudos sobre a História Russa e Soviética. Além de suas pesquisas, interessa-me particularmente a discussão que levou, de forma pioneira, sobre a relação entre cinema e História, embora não aborde diretamente o ensino. Dois escritos de Marc Ferro são essenciais neste debate: Cinema e História e a História Vigiada. Nota-se que o cineasta tem intenções, possui uma ideologia, pertence a uma classe ou grupo social, tem uma visão do mundo e portanto, mesmo que não intencionalmente, estará longe da imparcialidade. O filme será sempre uma versão, uma explicação. O cineasta não é um historiador; o filme, enquanto recriação da realidade, é a arte e, como tal, pode ir além do real e acrescentar fantasia, ficção. Embora não retratando um acontecimento real pode criar uma impressão da realidade que se embasa e se encaixa no contexto de uma época. Pode tornar possível aquilo que normalmente é impossível.           Quando se propõem a necessidade de trabalhar diferentes versões da História, o cinema apresenta-se como uma possibilidade pois, em geral, existem diferentes filmes sobre a mesma temática. Assistir filmes com perspectivas diferentes, com atenção para a verdade apresentada em cada um, é um trabalho capaz de oportunizar ao aluno (para além do bem e do mal, do certo e do errado) o entendimento da dinâmica de construção e de escrita da História e a relação entre História e verdade. Pode-se confrontar o cinema a outras produções sobre o mesmo tema: livros didáticos, livros temáticos, reportagens de revistas e jornais, depoimentos orais, fotografias, pinturas, músicas, onde outras informações poderão acrescentar, confirmar ou contrariar a versão do filme.
            Para o cinema, determinados temas que, nas pesquisas, nos livros, na memória, recebem pequena ou nenhuma atenção, acabam por constituir-se no alvo principal. Um exemplo apresentado por Marc Ferro elucida isso: A revolta dos marinheiros no navio de guerra, no contexto da Revolução Russa, apresentada no filme “O Encouraçado Potemkin” (Sergei M. Eisenstein, União Soviética, 1925) provavelmente teria pouca importância nos livros de História ou seria excluída da memória, não fosse esse filme.
            O cinema também cria heróis, vilões e estrelas, que realizam façanhas, comandam ou combatem exércitos, comovem e encantam. O centro do enredo é, na forma tradicional, um indivíduo que produz História. Os demais o seguem ou vivem em função deste, seja ele um herói da História oficial, caso “Cristóvão Colombo: a aventura do descobrimento” (John Glen, EUA, 1992), ou dos movimentos populares, “Chico Rei” (Walter Lima Jr., Brasil, 1986). Alguns filmes, por sua vez, não trabalham muito o personagem/herói em um esforço de retratar a construção coletiva da História, como no filme “Eles não usam black tié” (Leon Hirszmann, Brasil, 1981).
            O professor de História que utiliza filmes comerciais em suas aulas, não terá o rigor e a técnica de um crítico de cinema. Contudo, a atenção para alguns aspectos ligados à produção, ao enquadramento e posicionamento da câmara, ao significado das imagens e das mensagens, à montagem, contribuem para a compreensão do filme e das intenções do cineasta. É um conhecimento indispensável a compreensão da linguagem que é própria do cinema.
            Não há lugar neste texto, mas se poderia também escrever sobre um conjunto de técnicas e sugerir sua utilização. Entretanto, parece ser recomendável ao professor: planejar antecipadamente o trabalho; debater o filme com os alunos, utilizando formas variadas; estar presente enquanto os alunos assistem ao filme, intervindo para destacar aspectos, retornando e repetindo cenas quando necessário; escolher e adequar o filme ao estudo que estão realizando naquele momento.
            Assim, retomando o argumento inicial, de que os filmes comerciais, não produzidos para o uso escolar, podem ser um interessante recurso para o estudo de História, desde que adequadamente utilizados, reforça-se a idéia de que o professor pode utilizar o cinema além da ilustração de um período ou de um tema e utilizá-lo na construção de conceitos essenciais à História como, por exemplo, tempo, espaço e mudança; que o cinema exige uma determinada postura intelectual e conhecimento da linguagem empregada; que o filme possui uma dimensão lúdica, importante no processo de aprendizagem; que o professor deve viabilizar o acesso do aluno à cultura que constitui-se em um patrimônio, no caso cinematográfico. Assim, sua utilização poderá agregar qualidade e envolvimento do aluno no estudo da História.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CARSDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Câmpus, 1997.
FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
—. Existe uma visão cinematográfica da História? In: A História vigiada. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

Nenhum comentário:

Postar um comentário